sexta-feira, março 23, 2007

 

O acordar

Aos poucos começou a ouvir o barulho ensurdecedor do trânsito, que se foi tornando insuportável.
Continuou com os olhos fechados, com medo do que lhe revelariam se os abrisse. Mas sabia que não podia permanecer assim durante mais tempo.
Sentia que estava deitado sobre uma superfície dura, o braço esquerdo…não o sentia, estava dormente por estar debaixo do seu corpo. Sentia a pele da face a ceder sob a pressão das pequenas pedras do chão. Sentia… já não sentia há muito tempo.
O barulho era ensurdecedor.
Tentou abrir novamente os olhos, mas a força dos fracos raios de sol feriram-lhe a visão. Fechou as pálpebras como se estivesse a negar toda a realidade que o rodeava. Tentou novamente.
O barulho dos carros era ensurdecedor.
Conseguiu focar uma pequena erva daninha, que lhe pareceu no momento muito resistente e altiva, ali ao frio e ao vento. Só agora reparou que estava frio e que também ele era uma erva daninha, ignorada por todos, mas aguentando o frio e o vento.
Ainda deitado tentou mexer as pernas, o braço direito e levantou vagarosamente a cabeça.
O nojo invadiu-o quando olhou para o vómito onde tinha estado deitado.
Apoiou a palma da mão direita e os joelhos, o braço esquerdo continuava estranhamente pendido do corpo, como se não lhe pertencesse, como se tivesse nascido ali há pouco tempo e ainda não tivesse tido tempo de aprender o seu funcionamento, como um pêndulo de um velho relógio de parede.
Olhou pela primeira vez em seu redor. Estava na rua, numa das mais movimentadas da capital, os carros passavam por ele a não mais de meio metro. O barulho do exterior confundia-se com o das suas ideias.
As pessoas ao seu redor, as mais simpáticas ignoravam-no, simplesmente não o viam. As outras olhavam-no com desdém no alto da sua estabilidade, tentando convencer-se que nunca passariam por uma situação como aquela.
Levantou-se a cambalear, o braço “recém-nascido”não o ajudava a manter o equilíbrio. Encostou-se a uma das paredes da paragem dos autocarros onde tinha pernoitado e resolveu arregaçar a manga para observar o apêndice adormecido. Este apresentava uma cor púrpura, a pele escamada e o trajecto das veias era assinalado por pontos, uns mais vermelhos outros mais negros, como se fossem sinais de stop dos carros, numa imagem nocturna, nas longas filas de trânsito.
Sentiu pena do braço, sentiu medo e abandono. Já tinha sido alguém, mas agora não sabia quem era, não se lembrava. Sá sabia que não queria ser ele.
Pela primeira vez em muito tempo, pela sua mente não passou a imagem do dealer, do cavalo ou do limão. Também não se lembrava da vida que levava antes da miséria humana onde hoje se encontrava. Só sabia que não queria ser ele.
O barulho era ensurdecedor.
Ia pedir ajuda. Só não sabia como…
O barulho dos carros era ensurdecedor.

Comments:
Carica said:
Olá Trugia...como já é hábito, mais uma vez,escreveste como se de dentro das tuas palavras tivesses nascido. kero, acima de tudo felicitar-te...e, já agora acrescentar k,apesar de se bater bem lá no fundo do poço,se olharmos em volta, haverá sempre uma corda onde nos agarremos.
 
Amei.........
 
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