quinta-feira, março 29, 2007

 

No fim dos dias quentes...

No fim dos dias quentes, quando surgem as primeiras chuvas, aparece no ar um aroma característico, o qual não se pode verbalizar:
- Mãe, cheira a terra molhada… cheira tão bem.
- Aí filho! Não digas isso, é a terra a chamar por nós…
Apertava bem a minha mão, como para evitar que a profecia se cumprisse, e seguíamos em frente até chegarmos ao largo da aldeia.
O largo era o centro da vida da comunidade, em terra batida com uma ligeira inclinação, e bem no centro a fonte de água. Uma coluna de pedra, nada ornamentada, com duas torneira opostas que quando abertas jorravam agua com tal turbulência que nos molhava as pernas e os pés. Como um ritual, entregavam-se á necessidade de ir buscar água nos carrinhos de mão, as mulheres nas quartas e os homens nos pesados cântaros, numa alegre melodia proporcionada pelo bater da roda de metal no chão de terra, ou pela falta de lubrificante no eixo do rudimentar veiculo O largo estava separado da estrada nacional, que esventrava a aldeia em duas, por um desnível que era facilmente ultrapassado através de umas escadas, com quatro degraus assimétricos, ali construídas em pedra e pintadas alegremente de branco. Era aí o poiso de Zé Cândido, como se de um altar se tratasse, onde todos lhe prestavam uma obrigatória mas ao mesmo tempo involuntária vassalagem.
O Zé Cândido era a personagem principal de uma aldeia que vivia das suas estórias e para as suas estórias. Do alto do seu poleiro tinha uma vista privilegiada para o largo da fonte, para a entrada do café central e, como se não bastasse, de uma ponta da aldeia até a outra ponta que acompanhava a estrada, na altura chamada de nova, por ser a única alcatroada. Á estrada nova chegava a carreira proveniente da cidade, e, os estrangeiros e emigrantes que estavam em trânsito para o Algarve. Zé cândido observava tudo e todos com os seus olhinhos muito pequeninos, sempre semicerrados devido ás horas de sol que enfrentava. Tinha um rosto disforme devido ao lábio leporino, no entanto apresentava-se, para compensar, sempre muito bem barbeado, o que destoava na sua vestimenta coçada e empoeirada. Como se não bastasse tinha os pés botos, salvo erro mais o esquerdo, que ele exibia sempre sem sapatos e sem meias, e que apoiava no chão quando caminhava, auxiliado por dois longos cajados que encaixava nas axilas para depois se balançar até ao próximo ponto de apoio. Passava os dias, e eu quase que apostava que também as noites, sentado nas escadinhas, como se fosse um pirata na proa do seu navio a procura de temporal, só lhe faltava o papagaio ao ombro, pormenor que ele compensava com uma voz rouca e aguda mas com projecção assustadora. Quando numa dos extremos da aldeia se ouvia a voz do Zé Cândido, dizia-se que ele estava a contar um segredo a alguém.
- Bom dia Manuela – dizia ele – bom dia fedelho, filho do teu pai. Olhando-me com os olhitos brilhantes como se com o olhar conseguisse descobrir todos os meus receios e medos.
- Estás á chuva, ainda te constipas. Dizia a minha mãe
- Ela é que, quando me cai em cima, não chega á terra, onde queria chegar – Respondia ele com uma gargalhada cavernosa – A tua Maria também queria ter chegado mais cedo á terra ontem, mas o namorado estava mais esfomeado que eu em dia de jejum – Nova gargalhada.
Minha mãe passava tentando não pensar, na observação que tinha ouvido sobre a minha tia, e seguíamos o caminho. Eu continuava a sentir os olhos nas minhas costas que tentavam esmiuçar os meus segredos.
Não eram raras as vezes que o povo ao verem o seu vulto, baixava os olhos, caminhava mais pela sombra, abrandava o passo, se fosse caso disso tentava reduzir o queixume do carrinho de mão ao mínimo, para escapar ao escárnio do Zé, tarefa que se revelava sempre infrutífera:
- Olha quem ali vem…
Ele sabia de tudo desde as traquinices dos miúdos ate ás coisas de adulto:
- Isso não são coisas para ti filho, não irias perceber – Apertando-me a mão, e eu tentando acompanhar o seu passo.
Hoje em dia ninguém utiliza a velha fonte que se ergue disfarçada no meio de um canteiro ajardinado. As velhas escadinhas foram substituídas por escadas projectadas por arquitectos, em betão. Com a construção de uma variante, também a estrada nova perdeu o seu encanto e as novidades, e o Zé cândido desapareceu subitamente.
Mas se lá passarem e tomarem atenção certamente que irão ouvir comentar o que não queriam que se soubesse. Eu oiço…

Comments:
Hoje , aqui fiquei , como que atraído por um azougue , à leitura , mais leitura , deste nosso Alentejo ...
O cheiro da terra molhada , do hortelã da ribeira , dos poejos e do azinho a arder numa noite fria de inverno , sentados em cortiços ouvindo histórias de outros tempos ...

Votos de uma óptima semana ...
 
Este texto fez-me ponderar se deixaria correr as lágrimas que não conseguiria contar. Aguentei, não sei porquê para ser sincero. Fizeste-me lembrar a minha casa que tá tão perto e tão longe, e que tinha estes cheiros todos. Hoje quando entro naquele quintal, ainda os sinto, mas não os vejo. Que óptimas recordações. Abraço forte. Temavondo
 
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